Noite, em uma avenida de grandes paralelepípedos anda um criança-moça de aparência moldável e flexível, sempre anda conforme o andar da carruagem. Tropeça as vezes, se esconde atrás de postes, senta na calçada. Seu trajeto é único e definitivo, está sempre perdida. Por todo esse emaranhado de ruas quase idênticas existem diversos ambientes, com portas convidativas, com luzes chamativas (ou não), com cores vibrantes (ou não). Ela cambaleando como bêbada, bêbada de si, tropeça no degrau e assume a mais nova aventura da noite, dessa eterna noite em que vive. Se redefine. É mais viável se portar assim, é mais viável usar trajes assim, é mais viável se conter, é mais viável não ser. Uma luz amarelada, um bar. Um atendente que está sempre limpando os copos com seu pequeno pano de prato branco como neve, exibe um belo bigode em seu rosto, lembra um português. Vê a moça que se aproxima ainda com ar embriagado, lhe é cortês, pergunta o que deseja com letras graves, demonstrando toda sua decisão de estar ali. Ela se sente acuada (como se sente por qualquer outra coisa), mas é mestre na arte de desfilar semblantes plácidos, sabe como ninguém representar um teatro social, reconhecendo a máscara que melhor lhe cabe no momento. Solta alguma frase genérica, mas que tenha algum impacto, pois quer ser suave, mas nem tanto... Mesa de sinuca, o tecido verde nunca parecerá tão verde. Copos e canecas de decoração, parecia algo familiar, como a casa de algum parente querido que mora longe. Se sente mais a vontade, mais do que se sentiria na casa do parente que possui o mesmo tom, tom de gargalhada alta e ofensiva. Mas com ela geralmente é assim, se sente mais livre no não-familiar. É mais fácil fazer cena quando ninguém te viu crescer... Vazio. Sem ninguém. Senta em um banco de madeira, e como está sozinha, não precisa fazer tipo, nem social. Mas faz, pois a vida sempre lhe convida para o baile. Passa algum tempo olhando para o nada, pensamentos que nunca se concluem latejam em sua mente, é confusa, mas não assume, tem vergonha de assumir. Chegam pessoas de desejável companhia, e algum vazio, em algum canto de si se preenche. Ainda assim parece não estar satisfeita, como se sempre houvesse um banco vazio ao seu lado, como se nada fosse tão importante assim. O que não é surpreendente, já que não é tão afável para si mesma. Se sente frágil, mas convém engolir um pouco de alegria, e desfilar seu bom humor, que claro, combina com seus novos jargões. São horas agradáveis, não há do que reclamar. Mutilou a todos com seu teatro, funcionou mais uma vez a sua fórmula mágica da aceitação social. Ela levanta antes de todos, retribui o bom atendimento com simpatia: sua mais válida gorjeta. Volta para seu (des)trajeto antigo e segura a máscara enquanto ainda podem lhe ver. Ainda não achou o que procurava. Vê na esquina, algo que parece ter alguma resposta para a pergunta que ainda não achou. Dessa vez está sozinha de si, cansada de ser, vai deixar se florir de si no próximo papel, distante e contida. É uma floricultura, também distante e contida. Se sente bem, como sempre se sentiu perto dessas coisas carregadas de energia pura. Cheira algumas flores, observa os detalhes das folhas e algumas lembranças saudosistas pulsam. Sente falta, mas sabe que não deve sentir, por isso disfarça pra si. Fica um pouco mais, finge analisar pra tentar se recompor. Se recompor disso que lhe falta. Mas, o que lhe falta? Resolve sair, antes que isso volte a ser maior do que ela. Tem medo de descobrir que essa é a resposta. Não achou o que procurava. Sai. Caminha algumas quadras, dessa vez com ritmo de caminhada. Está fugindo, mas não quer que percebam. Para em frente a uma escola, resolve não entrar e fica parada ao lado do pipoqueiro. Gargalhadas são mais doces quando florescem em corações sem amargura. Não que ela seja amargurada, apenas não consegue apreciar com tanto louvor todo esse teatro da alegria material. Parece hipocrisia o quão é boa atriz nessa peça que não lhe convém. Se lembra de quando começou a afogar dentro dos outros, sempre se entregou tão assídua que não conseguia interpretar. Quando percebe tudo que é abstrato deixou de existir, tempo e espaço não estão mais ali. Ela também se mergulha dentro de si. Mas não se encontra lá, está perdida dentro de seu perdido. A única coisa que sente e vê é uma névoa sentimental colorida e por vezes cintilante que obstrui todo seu raciocínio lógico e claro. E ela, a névoa, está lá, cobrindo as ruas, tampando as fachadas e transformando tudo nos seus eternos conceitos pontuais e vagos sobre tudo que lhe circunda, Como se tudo pudesse ser nomeado de uma forma genérica, sem atribuir adjetivos e qualidades, mas no mesmo padrão de suas máscaras. Vê o pipoqueiro: Tão puro. Farmácia: Tão sintético. Supermercado: Tão múltiplo. Loja: Tão fútil. Carro: Tão prático. Chão: Tão Frio. Mãos: Tão quentes. Olhos: Tão profundos. Água: Tão sincera. Nós: Tão unos. Eu: Tão vazia.
E só percebe que andou algumas ruas, quando um conhecido a vê de longe e solicita a sua adorável presença. E agora? qual o melhor traje pra essa ocasião? Ela está presa nesse jogo, e não sabe mais como jogar os dados. Quer ter hálito fresco.
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